Originally published here https://electronicliteraturereview.wordpress.com/2015/03/21/entrevista-a-pedro-barbosa/ on the 21st of March 2015
ELR: Pedro Barbosa, encontra-se ligado à literatura electrónica desde os anos 1970. Em 1977 publicou os seus primeiros trabalhos – “Poema de computador”, “Aveiro” e “Porto”, entre outros -, fruto de um processo de geração automática de texto. Como nasceu o seu interesse pela literatura electronica?
Pedro Barbosa: Longa história, nem sei bem como essa ideia germinou, pois nessa época recuada o computador ainda era uma máquina mítica, quase inacessível, que ocupava um edifício inteiro, e neste caso tudo aconteceu no LACA (Laboratório de Cálculo Automático) da Faculdade de Ciências do Porto. Um curso livre de Linguística Matemática e Computacional abriu-me o acesso a esse computador dinossáurico, que trabalhava ainda com cartões e rolos de fita perfurada. E então ocorreu-me a ideia de criar um algoritmo em FORTRAN para ensaiar uma experiência poética com palavras e não com números – algo que na altura foi encarado como uma ideia totalmente peregrina por parte do engenheiro que dirigia o Centro, mas que mesmo assim colaborou na minha bizarria. Isso aconteceu em 1975 e o primeiro texto (“Poema de Computador”) foi escrito e publicado em 1976. Nessa época eu já tido notícia das experiências de Louis Couffignal e Nanni Balestrini, nomeadamente através da crónica romanceada de Fernando Namora, «Diálogo em Setembro», onde em 1967 ele relatava os debates nos Encontros Internacionais de Genebra sob o tema “O Robot, o Animal e o Homem”. Mas o livro determinante de Abraham Moles, «Art et Ordinateur» (1971), só mais tarde me chegou às mãos – assim, tudo para mim foi de início uma aventura no deserto, em que tive de partir do nada como um “aprendiz de feiticeiro”. Mas era o tempo em que se abria a controvérsia em torno da automação, da robótica, da cibernética e da inteligência artificial… Então, digamos que o clique a fazer disparar essa primeira experiência terá sido apenas uma ideia-base muito simples: se o matemático e o cientista usavam o computador para potenciar os seus cálculos e o seu pensamento, como poderia essa poderosa máquina nascente (esse “cérebro electrónico”, como era então mitificado), prestar ajuda ao artista e ao escritor para potenciar o seu trabalho criativo? Tudo partia de tal modo do nada que eu nem sabia dar nome às coisas: tive de as ir “baptizando”. Aos primeiros textos chamei-lhes “autopoemas gerados por computador” pois havia ali um quase automatismo combinatório e aleatório. Depois, com as primeiras experiências narrativas, veio a necessidade de encontrar um nome mais abrangente, e apadrinhei tudo isso de “Ciberliteratura”: mas aqui o sentido desta palavra equivalia a “literatura algorítmica”, em que o radical “ciber-” provinha da Cibernética, da ideia de automação, e nada tinha a ver com o uso hoje mais corrente que dele se faz ligando-o ao ciberespaço e à internet, algo que obviamente estava ainda muito longe de existir. Contudo, com a fase do computador pessoal que em breve se seguiria, o trabalho foi-se tornando progressivamente mais facilitado e acessível. Porém, o meu objectivo sempre foi este: usar o computador como uma máquina semiótica, como um “telescópio de complexidade”, tentando levar mais longe o trabalho colaborativo numa simbiose homem/máquina. Ou seja, encarando o computador, não como um substituto do artista, mas como uma “prótese mental” para potenciar o trabalho criativo na esfera literária. Foi assim que tudo começou. Algo que depois se foi prolongando e consolidando por quase trinta anos, até hoje.
ELR: Ao longo do seu percurso criativo trabalhou com alguns engenheiros e programadores informáticos. Vê a produção de literatura electrónica como uma espécie de trabalho colaborativo? Como definiria a literatura electrónica? Poderíamos falar de um género?
Pedro Barbosa: Bem, no início eu aprendi a programar, primeiro em FORTRAN e depois em BASIC. O auxílio técnico que recebi foi apenas para ultrapassar os impasses e os erros, pois eu era um “homem de letras” e não um informático. Porém, o material verbal e a estrutura textual, assim como os algoritmos, sempre foram concebidos por mim: digamos que a autoria literária, e mesmo a programação, era minha, não se tratava propriamente de um trabalho colaborativo, e sim de um auxílio técnico para melhor codificar o projecto literário em linguagem maquínica. Quanto à questão de a literatura electrónica ser um trabalho individual ou colaborativo, isso depende, a meu ver, de vários factores: antes de mais nada do facto de o artista poder ser também, ou não, um programador; mas depende também da complexidade e da amplitude do projecto. Hoje, com o advento do multimédia e da hipermédia, muitos trabalhos tornaram-se tão vastos, tão plurais e tão diversificados que dificilmente poderão ser executados por um único autor, e tornam-se cada vez mais cooperativos, pluridisciplinares – “transcompetenciais”. Mas esse é também o caso do cinema ou do teatro: e tal não impede que não se possa as mais das vezes vislumbrar um autor originário por detrás do projecto global (à semelhança do cineasta, do argumentista cinematográfico ou do dramaturgo teatral). Isso foi importante, por exemplo, aquando da publicação do meu primeiro livro virtual em disquete, a «Teoria do Homem Sentado»: pois era preciso elaborar um contrato com o editor, e a Sociedade Portuguesa de Autores não sabia como fazê-lo por não haver precedentes nem legislação adequada. Além do mais, como fazer o contrato de um “livro virtual” cujo texto-criado nem existia à partida? Ou seja, de um livro contendo um logicial em suporte magnético que iria gerar até ao infinito os textos-a-criar? Na verdade, o “livro” apenas existia em estado potencial, e não em estado actual. Assim, e por motivos meramente pragmáticos, foram registados separadamente a parte em livro-papel (com a componente teórica) e o programa em suporte digital (que era o “livro” propriamente dito mas em estado potencial) – em co-autoria, digamos assim. E daqui decorre a minha incapacidade para responder à questão seguinte: se a Ciberliteratura e a Ciberarte são meros géneros ou se representam uma ruptura em processo no universo literário e artístico. Penso que as coisas ainda estão numa evolução transformativa tão acelerada que não é fácil vislumbrar o seu resultado futuro. Na minha opinião, estamos sim numa fase de transição que representa o fim da era de Gutenberg (assente na ideia de um original fixo e na sua multiplicação em cópias iguais) e no início de uma era digital onde todos os sinais (verbais, sonoros, visuais) se fundem em zeros e uns manipuláveis no próprio original: isto por um lado quebra as fronteiras discursivas do verbal que vai desaguar no multimédia, e por outro lado permite activar algoritmos conceptuais de natureza potencial que se traduzem, não em cópias sempre iguais, mas sim num vasto campo de “múltiplos” todos diferentes entre si embora dentro de um padrão comum. Ou seja: estamos diante de outras modalidades textuais e de novos paradigmas comunicacionais. Em suma, a meu ver, há que interiorizar a ideia de que se está face a uma mudança de paradigmas discursivos e comunicacionais, e isso implica ter de lidar com novas estruturas textuais: assim, na minha visão das coisas, o texto generativo, o texto dinâmico, o texto virtual, o hipertexto, o texto multimédia e a hipermédia, para só referir algumas tipologias, não se enquadram no conceito restrito de género literário, e sim de novas modalidades textuais que implicam a passagem da era gutenberguiana para a era digital. Ou de um paradigma cultural 3D para um paradigma cultural 4D: algo onde a ideia matemática de “hipercubo”, ou cubo a 4 dimensões, e daí a ideia de hiperespaço, é algo que surge na base deste novo paradigma cultural. E a Internet, como rede global numa nuvem electrónica planetária, configura, quanto a mim, uma espécie de noosfera tecnológica onde a cultura humana habita hoje numa esfera informacional que é quase um protótipo antecipador (ou uma metáfora tecnológica) daquilo que os esotéricos conhecem, num plano mais subtil ou etérico, como “arquivo akáshico”. Creio que se as sociedades de autores ainda não conseguiram com sucesso dar conta desta mutação é porque tentam aplicar conceitos de legislação autoral arcaicos (digamos, gutenberguianos) às novas estruturas textuais e comunicacionais que requerem uma mudança de paradigma. Isto acontece mesmo no caso mais generalizado e mais simples do e-book, que não passa de um livro em suporte digital (e que eu distingo radicalmente da “ciberliteratura algorítmica”): também a este se aplica normalmente uma legislação repressiva, assente ainda na ideia de protecção das cópias, algo que é hoje incontrolável. O facto é que ainda hoje a legislação de direitos de autor luta com dificuldades para englobar e proteger estas novas modalidades textuais na sua diversidade. Mas para responder melhor à questão colocada, importa referir algo importante que aprendi quando fui convidado pelo Philippe Bootz a colaborar no projecto pioneiro da sua revista electrónica «alire»: é que foi preciso elaborar um contrato por exigências legais da publicação em França. Estava então tudo no começo, por isso até em termos de direitos autorais havia um vazio. Lembro-me de ele ter estabelecido um contrato-tipo para todos os colaboradores de «alire», os quais apresentavam trabalhos com uma grande diversidade: e a opção tomada por ele, e hoje penso que acertadamente (tanto mais que ele era um poeta que vinha da área das ciências, sendo programador também), foi a de considerar apenas como autoria a concepção literária e não o trabalho de execução técnica. Isto independentemente de esse trabalho técnico poder ser acumulado pelo próprio literato ou ser feito por um informático à parte: pois ele considerava o trabalho de programação apenas uma espécie de tradução em linguagem maquínica de uma ideia literária e de um algoritmo conceptual. Na verdade, era desta criação literária que nascia o sentido do texto, e não da sua codificação informática… Contudo, quando a complexidade dos textos e dos algoritmos se foi tornando maior, um apoio técnico especializado começou a tornar-se cada vez mais necessário. A minha competência informática ficava aquém da amplitude literária dos projectos.
ELR: Também escreveu texto dramático. Se fizéssemos uma comparação entre ciberliteratura e literatura em papel, e aqui para o teatro, quais as semelhanças e diferenças que destacaria?
Pedro Barbosa: Escrevi várias peças de teatro, sim, mas de modo, digamos, tradicional em termos de escrita teatral. Ali, porém, só o material textual, propriamente dito, foi gerado aleatoriamente no SinText e no Motor Textual – a selecção e organização dramatúrgica desse material textual foi “humana” e não maquínica. Por isso concordo inteiramente com uma voz crítica que lucidamente discordou de que esse trabalho fosse apelidado de “ciberteatro” sendo, sim, mais apropriado ser rotulado como “ciberdrama”. Contudo, esse trabalho, para mim, foi altamente instrutivo e revelador: aprendi muito com ele. Porque a dificuldade incomum dos actores em memorizarem esse texto mostrou-me que se estava perante um outro estádio de linguagem: digamos, uma linguagem estruturada em ciclos espirais renováveis, algo que era mais fruto de uma lógica maquínica, matemática ou algorítmica, do que propriamente o resultado de uma associação metafórica puramente mental ou psíquica. Daí o facto de os intérpretes dificilmente encontrarem apoios mnemónicos por associação mental. Os liames, os nexos textuais, eram de outra ordem. E isso deixou-me a convicção de que, ao fim de quase 30 anos, o meu objectivo inicial tinha sido alcançado com o que chamei de CIBERLITERATURA: um estádio outro no uso criativo da linguagem literária, onde uma semente de “inteligência artificial” se tinha introduzido para renovar e reciclar a linguagem humana tradicional – e um vasto campo de produção e de recepção onde os limites do combinatório ou do aleatório se tornam potencialmente infinitos. O único texto dramático que entrou na alçada do texto generativo foi «AlletStor/RotaStella.Kosmos2001» – isto na sua versão inicial para palco de teatro, em 2001. Pois também existe a sua recriação posterior em hipermédia – que é bem diferente.
ELR: Quão radicais são as mudanças da estética literária no contexto digital?
Pedro Barbosa: Sem querer, penso que o essencial do que deixei escrito no item anterior responde de certo modo a esta pergunta. Em todo o caso, gostaria só de aclarar o que na minha perspectiva poderá (entre muitas outras coisas) implicar a transição para uma era digital. Estou em crer que a separação dos discursos (o verbal, o imagético, o gestual, o sonoro…), e com isso a separação clássica das várias artes (literatura, pintura, escultura, música, cinema, etc.), ocorreu prioritariamente por motivos tecnológicos com o surgimento da escrita (que é em si mesma uma primeira tecnologia de comunicação) e depois com as técnicas multiplicativas do impresso na era dita de Guttenberg, e mais recentemente ainda com o surgimento de novas linguagens audiovisuais como foi o caso do cinema. Esta dispersão discursiva, contudo, parece encontrar um novo ponto de fusão no digital onde todos os sinais, sejam sonoros, verbais, visuais, etc., se podem converter por igual em zeros e uns – daí, a meu ver, a força com que o multimédia se vem impondo. Ora isto está a trazer um relativo esbatimento das fronteiras artísticas tradicionais, quer seja no caso da literatura (a questão da “literariedade”), do domínio musical (música concreta e electrónica, poesia sonora, palavra oral), ou do universo visual e audiovisual. E aqui, a informática e a inteligência artificial trouxeram rupturas ainda mais significativas com aportações como a síntese de voz, a imagem de síntese, a tradução automática, a realidade virtual, e tudo o mais que está a surgir hoje vertiginosamente. Uma releitura do “Fedro” de Platão poderia a este respeito ser muito elucidativa para nós, porquanto aí se problematiza a mutação cultural ocorrida outrora aquando da passagem de uma cultura baseada na oralidade para uma cultura assente na escrita. No início, penso eu, a comunicação humana era basicamente sincrética, holística: o verbal, o gestual, o sonoro, o visual, conviviam como um todo indiscriminado (algo que sobrevive ainda no teatro). E actualmente parece que se recupera de novo essa totalidade sincrética dos sinais embora por via de uma tecnologia mais sofisticada. Daí que eu veja a mutação que hoje ocorre na era digital como algo ainda mais radical do que uma mera fase pós-gutenberguiana: vejo na era digital uma transição tão profunda como a que ocorreu aquando da passagem de uma cultura oral para uma cultura escrita. E isso foi algo que inaugurou uma nova baliza na História na nossa civilização. Então, a posição de certo modo conservadora de Sócrates no “Fedro” de Platão, ao reagir contra a escrita como sendo a morte do pensamento dialógico ao vivo, o qual, segundo ele, ficaria mumificado na fixidez do registo escrito, é hoje, para mim, um sinal muito esclarecedor das discussões que hoje se travam com os novos “velhos do Restelo” a respeito do digital nesta época alucinante de mudança de paradigmas… E mais não posso dizer para não fazer futurologia.
ELR: Na sua opinião, como pioneiro, quais foram os principais marcos na história da literatura electrónica no caminho que nos conduz até aos dias de hoje?
Pedro Barbosa: Uiiiiiii! Mas esses marcos seriam tantos e tão diversos que seria injusto não os poder referir aqui todos… Contudo queria deixar apenas assinalados aqui dois deles, que funcionaram como protótipos (aliás marcadamente europeus). Pelo menos esses dois foram determinantes para mim no meu percurso inicial, digamos, a sua dupla fonte Em Itália, a experiência combinatória de Nanni Ballestrini com “Tape Mark 1”, na IBM, em 1962. E em França, a curiosíssima experiência do matemático Louis Couffignal que, assessorado pelo engenheiro Ducroz, criou uma máquina baptizada de “Calíope”: com os seus textos aleatórios abriu um polémico debate aquando das Conferências Internacionais de Genebra em 1965, sobre o tema “O Robot, o Animal e o Homem”, onde esses mesmos “textos computadorizados” geraram grande perplexidade na assistência ao serem colocados em confronto com um outro “texto humano” do poeta surrealista de Paul Éluard. E já agora, que estamos na Europa, gostaria de evocar também aqui o tão injustamente esquecido trabalho de Angel Carmona e Pedro Crespo, com os seus “Poemas V2” fixados em papel-pijama: um notável trabalho realizado em 1976 em Barcelona, Espanha, exactamente na mesma altura em que a vários milhares de quilómetros eram também ruminados em Portugal os primeiros autopoemas computacionais. Importa dizer que só anos mais tarde vim a ter conhecimento desses “Poemas V2”, que me foram trazidos da Galiza em fotocópia por um amigo que por lá os desencantou num alfarrabista, pois quando os quis procurar no original nem dos arquivos da Biblioteca na Biblioteca Nacional de Madrid eles constavam… Em suma: uns poemas V2 que em vez de explodirem, como seria de esperar de qualquer bomba V2, antes implodiram no próprio lugar onde foram lançados. Façamos então aqui justiça a esta sintomática amnésia literária.