Entrevista a Rui Torres

Originally published here https://electronicliteraturereview.wordpress.com/2013/06/07/entrevista-a-rui-torres/ on the 7th of June 2013

ELR: Rui Torres, começou a estudar e a criar obras de literatura digital em 2004. Como se envolveu neste campo e de onde veio a inspiração?

RUI TORRES: Comecei um pouco antes, talvez em 1998, embora sem publicação imediata. Estas coisas levam o seu tempo a maturar e a desenvolver, pois envolvem processos novos, exigem muito tempo de conceptualização, desenho e programação… De qualquer modo, a inspiração foi a obra de Pedro Barbosa (utilização de procedimentos combinatórios e generativos na ciberliteratura), E. M. de Melo e Castro (teoria e prática da poesia experimental) e Herberto Helder (montagem textual), em Portugal, mas também o trabalho de Philippe Bootz em França… De um modo geral, interessa reconhecer que a intermedialidade que encontrei no futurismo, no concretismo, na poesia visual…. foram fundamentais para a dissolução de um conceito rígido de texto. As propostas de John Cage, nesse sentido, estão na base de tudo isto. Envolvi-me neste campo porque fui aluno do Pedro Barbosa, tendo estado presente na altura em que ele fundou o Centro de Estudos sobre Texto Informático e Ciberliteratura na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, em 1996, talvez o primeiro Centro de I&D dedicado ao estudo da literatura electrónica… Por fim, reconheço que sempre me interessei pelas expressividades do software, pelo que cedo resolvi experimentar utilizá-lo, não tanto para a programação em hipermédia, mas para a produção literária…

ELR: Numa obra de literatura digital autores/as e leitores/as são ambos confrontados com novas tipologias de criação, publicação e fruição de obras literárias. Entende a literatura digital como uma experimentação literária?

RUI TORRES: Sim, entendo a literatura digital como uma experimentação literária. Mas admito que toda a criação é experimentação, por isso talvez seja melhor clarificar este conceito, já que ele é contestado e criticado por vários poetas de inovação, do concretismo à poesia visual. Não situo o experimentalismo num dado período, mas como uma tendência intemporal para o jogo, a relação lúdica com a linguagem, a ergodicidade textual e os maquinismos semióticos. Mas há que reconhecer que toda a arte é, de certa forma, experimental, já que ela promove, no acto da sua construção, uma relação de deformação do real, de actuação com o espaço e o tempo humanos. O problema da arte e da literatura experimental situa-se no momento em que passam desse estado de performatividade, mutável e líquido, para uma certa literariedade, isto é, quando se transcodifica a acção integradora e actuante da arte num espaço filológico de museu. Por isso, de facto, talvez a literatura digital, a par da performance, constitua o melhor exemplo de experimentação literária, já que depende de procedimentos variáveis e de metamorfose.

ELR: Em alguns dos seus trabalhos, tais como Tema procura-se (2004) e Mar de Sophia (2005), combinou texto escrito com som ambiente e uma voz a recitar texto. Em que medida a multimedialidade determina a fruição e, consequentemente, a estética da obra literária?

RUI TORRES: O meu objectivo era precisamente essa integração, principalmente de som e texto, mas nesses dois exemplos, como aliás em todos os meus trabalhos, o procedimento fundamental é a aleatoriedade da e na geração textual, por isso embora se trate de uma multimedialidade, ela não é linear. Interessa entender a complexidade estrutural que o algoritmo introduz no tratamento da linguagem. Embora o surrealismo, por exemplo, tenha tentado afastar a criação literária da subjectividade autoral, que sempre vem acompanhada de um determinado reportório e de um certo número de convenções, os processos eram processos criativos humanos, portanto derivados, até certo ponto, de uma cultura. A utilização da combinatória maquínica afasta esse aspecto pré-adquirido pela introdução de um nível de complexidade enorme: a maioria dos textos que programo são variáveis e não fixos ou pré-determinados, alguns deles entregando ao leitor a activação de possibilidades textuais que são uma entre vários milhões…

ELR: Na grande maioria dos trabalhos da sua autoria o/a leitor/a tem a possibilidade de criar texto, guardá-lo e publicá-lo no blogue. Qual a importância da interactividade por parte do utilizador nas obras de literatura digital e qual o relevo da criação de uma memória do processo?

RUI TORRES: Esse exemplo apontado é um dos modos de interactividade. Há outros, eventualmente mais ricos, como a possibilidade de alterar a própria obra, conferindo-lhe uma certa mutabilidade ou variabilidade. A indeterminação dos processos poéticos que programo (sempre de uma forma colaborativa) obrigaram-me precisamente a considerar a possibilidade de usar um dos mecanismos retóricos da web 2.0, os blogs, para criar uma espécie de diário de bordo da comunidade de leitores destes poemas.

ELR: Tendo em consideração a rápida evolução das linguagens informáticas, do software e dos dispositivos electrónicos, quais as estratégias disponíveis para arquivar e preservar trabalhos literários nativos do digital?

RUI TORRES: Esse é de facto um aspecto fundamental. Eu julgo que a preservação deve estar acima das nossas preocupações com a obsolescência, embora ambas se articulem. Se quisermos estar sempre a seguir a última tecnologia para não ficarmos com trabalhos obsoletos (isto é, ilegíveis), acabamos reféns da retórica da inovação e da novidade; somos presas fáceis da política do software, que naturalmente interfere na camada cultural. Assim, devem os autores escolher livremente as ferramentas que usam nos seus processos criativos, mesmo sabendo à partida que algumas delas poderão eventualmente tornar-se obsoletas. Neste sentido, as ferramentas de código aberto, baseadas num procedimento associado ao software livre, são mais adequadas para garantir preservação a longo prazo. Mas fundamental é que os autores disponibilizem as fontes dos seus programas, documentando todo o processo e tornando acessíveis ao público esses materiais não encriptados que tornarão possível uma futura arqueologia das plataformas e das aplicações.